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Este consultório da Oficina de Psicologia tem por objectivo apoiá-lo(a) nas suas questões sobre saúde mental, da forma mais directa possível. Coloque-nos as suas dúvidas e questões sobre aquilo que se passa consigo.
Autora: Filipa Jardim Silva
Psicóloga Clínica
Por entre o frenesim dos dias que correm uns atrás dos outros estamos permanentemente acompanhados. Se formos de transportes públicos para o trabalho sentimos o calor físico de tanta companhia em espaços por vezes insuficientes, se formos de carro acompanham-nos os locutores dos programas de rádio de início e fim de dia, se formos a pé o ruído dos carros impera. Quando estamos em casa a televisão está ligada e enche o espaço, quando estamos no trabalho esquecemo-nos do que é o silêncio por entre telefonemas, reuniões e solicitações permanentes. E depois as relações: profissionais, de amizade, amorosas e familiares. Vozes que nos ocupam o espírito, convites que nos preenchem a agenda, amor que nos aquece a alma.
Até que ao virar da esquina eis que, um dia, surge o vazio. Sem aviso prévio, sem ter sido convidado instala-se súbita e inesperadamente nas nossas vidas. Reclama por um espaço dentro de nós que nos ecoa estranheza, desconforto, medo. Por vezes chega pela mão de uma morte, de uma catástrofe natural ou de um acidente, outras faz-se acompanhar pelo um fim de uma relação, por uma traição, por um despedimento. Apanha-nos quase sempre de surpresa este vazio que ecoa pontos de interrogação e outros tantos de exclamação. A sensação inicial de atordoamento é frequente, à procura de marcos de referência para uma realidade distinta da habitual, à procura de chão. E por vezes tem de se caminhar sem saber bem por onde, mas caminha-se, um passo de cada vez, provoca-se movimento. Mais à frente abastecemo-nos de zanga, de um sentimento de injustiça que nos rasga de dentro para fora, que nos faz duvidar se seremos novamente capazes de confiar na vida e de nos entregarmos por inteiro ao presente. Achamos que não, mas depois reconsideramos. Por vezes rasgam-se horas, umas atrás das outras, hipotecam-se dias e anulam-se momentos. E a saudade, do que foi e já não é, do calor que já se extinguiu, da proximidade que se perdeu, da construção que ruiu. Numa outra estação, mais adiante e mais serenos, permitimo-nos finalmente a estar com o espaço vazio dentro de nós. Mal ou bem, já não nos é estranho, já não o questionamos nem nos revoltamos contra ele. Começamos simplesmente a conhecê-lo, a medir-lhe os limites, a ouvir os seus ecos, a senti-lo na nossa pele, a apreciar os seus efeitos em nós, agora diferentes também. Por vezes este vazio possibilita mudanças que a falta de espaço interna aprisionava. Mudanças que não existiam num horizonte próximo nem como necessárias ou benéficas. Estar-se preenchido é positivo, mas por vezes entra-se num registo de piloto automático em que os braços e vozes dos outros nos guiam, e deixamos de questionar, simplesmente vamos na corrente, que é certa e faz sentido.
Importa por isso procurarmos estar connosco mesmos, percebermos o que é nosso e o que é dos outros num trabalho de individuação persistente, de fortalecimento do que realmente somos sozinhos e não apoiados ou ao lado dos outros. Importa guardarmos espaço para o vazio de alguns momentos, um vazio imprevisível e criativo, que pode dar balanço para fora e para a frente. Importa testarmos limites e nos colocarmos em posições algo desconfortáveis de vez em quando para não perdermos o hábito de conduzirmos em piloto manual, sem instruções e com fraca visibilidade.
A vida tem muito de imprevisível, o que tem tanto de fantástico como de assustador. Cabe-nos a nós nos treinarmos no dia-a-dia para que em alturas de mudança súbita dos ventos consigamos fazer frente às adversidades, superar obstáculos e construir novos caminhos.