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Este consultório da Oficina de Psicologia tem por objectivo apoiá-lo(a) nas suas questões sobre saúde mental, da forma mais directa possível. Coloque-nos as suas dúvidas e questões sobre aquilo que se passa consigo.
Autor: Francisco de Soure
Psicólogo Clínico
Num artigo anterior, tive a oportunidade de ilustrar a utilidade da zanga enquanto emoção promotora da qualidade de vida, e protectora dos nossos limites individuais. Vimos a forma como a sua repressão e expressão excessiva (e, por vezes, como uma implica a outra) podem trazer-nos dissabores, assim como os claros benefícios que podem advir da sua expressão adequada.
Neste artigo, vamos poder olhar para as consequências a longo prazo da expressão desadequada de zanga para a nossa saúde mental. Tomemos como ponto de partida uma consideração fundamental que foi referida no anterior artigo: a zanga é a emoção que nos permite estabelecer limites, desempenhando um papel fundamental na regulação das nossas relações com os outros.
Para todos nós, existe um conjunto de necessidades psicológicas básicas que necessitam ser supridas de forma a assegurar a nossa saúde mental. A segurança, afecto, suporte emocional, autonomia e lazer são apenas algumas destas necessidades. Quando estas necessidades não estão satisfeitas, surgem dificuldades, muitas delas configurando quadros de perturbação psicológica. Por exemplo, a maioria das pessoas que sofrem de ansiedade não têm a sua necessidade de segurança satisfeita. Vivem com uma sensação profunda (e, muitas vezes, não reconhecida) de vulnerabilidade. Seja uma vulnerabilidade física (aprendida, por exemplo, ao longo de anos de agressões físicas às mãos de figuras de cuidado, ou de sofrimento físico causado pela negligência das mesmas), seja uma vulnerabilidade emocional ou social (aprendidas com experiências de humilhação ou abuso emocional), esta resulta uma constante quase subentendida na sua experiência de estar vivos. Esta vulnerabilidade sentida origina uma expectativa permanente de risco pessoal, que resulta num estado ansioso. Com expressões tão diversas, entenda-se, como a perturbação de pânico – na qual expressamos um medo desadequado da possibilidade de sofrer repentinamente perigo de vida ou de descontrolo total – ou a ansiedade social – a expectativa permanente de sermos avaliados muito negativamente pelos outros, com consequências catastróficas. É através da expressão das emoções que regulamos as nossas relações com os outros de forma a garantir a satisfação destas necessidades – por exemplo, num contexto adequado, a expressão adequada de medo por parte de uma criança conduz a que os seus pais procurem protegê-la. O exercício continuado destas emoções permite-nos criar uma expectativa de que, caso expressemos as nossas emoções de uma forma adequada, as nossas necessidades serão satisfeitas como resposta. Quando isto não acontece, o quadro torna-se muito diferente.
No caso particular da zanga, temos duas situações. Quem aprende desde cedo que só uma expressão constantemente intensa e agressiva da zanga consegue estabelecer os limites, tende a generalizar esta expressão agressiva em todas as situações nas quais sente que os seus limites estão a ser infringidos. Todos conhecemos alguém assim. Aquela pessoa que reage agressivamente de forma inesperada sempre que lhe é feito um pedido, ou reage constantemente com agressividade a brincadeiras que pretendemos ser inofensivas. Ou aquela pessoa que dá sempre feedback aos outros com “sete pedras na mão”. O contrário também conhecemos, seguramente. A pessoa que parece aceder a todos os pedidos e exigências sem argumentação. A pessoa que fica sem reacção quando confrontada, e parece acatar docilmente afrontas e insultos. Muitas vezes, a pessoa que parece explodir quando menos esperamos…
Imaginemos, por um momento, o efeito destas situações a longo prazo para ambos os estilos de expressão de zanga. A primeira, seguramente, sentir-se-á frequentemente distante dos outros. A sua zanga será reciprocada com zanga, pelo que será provável que sinta também que os outros levam sempre a mal quando estabelece limites. Sentirá que os seus limites não são respeitados, já que quando os estabelece estas tentativas são sempre correspondidas com mais agressão. Como se nunca fosse verdadeiramente aceite e respeitada. Já a segunda estará regularmente a privar-se de necessidades como tempo pessoal, o livre uso de recursos pessoais como a energia, o dinheiro, ou o seu espaço físico. A vida pode tornar-se muito pouco gratificante para quem parece estar sempre disposto a abdicar. Com o tempo, a repetição destas formas de abuso poderá resultar numa crença como: “eu tenho o que mereço. Se tenho muito pouco, deve ser porque mereço muito pouco”, ou “se os outros gostam de mim, tratar-me-ão bem. Se me tratam mal, deve ser porque não há grandes motivos para gostar”. Qualquer um destes cenários pinta um quadro de crónica insatisfação. Necessidades como a aceitação social, autonomia pessoal, privacidade, ou lazer poderão ser das mais afectadas.
Qualquer um de nós conhecerá seguramente alguém que já viveu uma depressão. Quem escutou o seu sofrimento, reconhecerá seguramente muitas destas privações como parte das queixas que quem está deprimido elenca: sentir que não é apreciado pelos outros; sentir que nada vale a pena porque os outros nunca o permitirão/respeitarão; sentir que o seu valor pessoal é diminuto; sentir-se encurralado por circunstâncias nas quais os outros parecem nunca estar disponíveis para ir de encontro às suas necessidades. Não pretendo, de modo algum, advogar que a expressão desadequada de zanga é a causadora exclusiva de aparecimento de sintomas de depressão. Tal alegação teria tanto de redutora como de absurda. No entanto, parece-me inegável que a dificuldade na expressão da zanga se pode constituir como um potentíssimo ingrediente no seu desenvolvimento.
Ao longo dos anos, a prática clínica tem-me posto em contacto com dezenas de pessoas com sintomatologia depressiva. Estaria a mentir se as dificuldades no estabelecimento de limites não fossem algo relatado pela vastíssima maioria destas pessoas. Num recente grupo de Depressão, como é regular realizar na Oficina de Psicologia, 6 dos 7 membros do grupo tinham nesta dificuldade o principal motivos das situações que precipitaram a sua situação. Da esposa que não conseguia que o marido regulasse as invasões de privacidade dos seus sogros, à mulher de meia-idade que não conseguia demonstrar aos seus filhos e amigos que determinados pedidos excediam a sua capacidade de lhes dar satisfação sem se sacrificar, o resultado era muito semelhante. Todas estas pessoas sentiam as transgressões que sofriam como o resultado da falta de valor pessoal, ou de afecto daqueles de quem gostavam
Deixo-lhe um convite: reflicta sobre a forma como estabelece limites. Sobre a forma como se posiciona face às suas necessidades e dos outros. O que quer partilhar connosco?