Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]




Segredos obsessivos

por oficinadepsicologia, em 15.01.10

Autora: Madalena Lobo

Psicóloga Clínica

 

 

1         Segredos obsessivos

Para falar da perturbação obsessivo-compulsiva (POC), tenho de começar pelo embaraço e pelo secretismo a que as pessoas que sofrem desta disfunção se auto-impõem.

 

E, por isso, convém justificar-me, explicar por estar a começar de uma forma tão em desacordo com os cânones tradicionais, e tão pouco habitual…

 

A POC constrói-se em torno do ilógico e do bizarro. Ilógicas são as ideias de que pensar e fazer acontecer estão, de algum modo, interligados. Ilógico é pensar que se fez algo contra vontade e de que não restou memória. Bizarro é verificar 4 vezes consecutivas a mesma porta, sempre, todas as vezes que ela é fechada. Bizarro é lavar um telemóvel por medo de contaminação porque foi dita uma palavra de má sorte durante a conversa telefónica.

 

E, contrariamente a outros problemas de saúde mental, quem sofre de POC sabe que o que pensa e o que faz é ilógico e é bizarro. Mas não consegue parar de o pensar e de o fazer. E, por isso, fica dominada por um forte sentimento de embaraço, pela vergonha que a atira para um isolamento emocional, para uma auto-contenção vigilante, numa defesa feroz deste segredo terrível: “Eu penso e faço coisas estranhas que, se os outros souberem, vão achar que enlouqueci”.

 

E, desta forma, acrescenta-se mais um nível, ao sofrimento que já ia elevado, pelo desgaste induzido pela própria perturbação. Tentar que ninguém perceba, resistir a falar sobre as preocupações obsessivas, ao ponto de até ter dificuldade em explicar concretamente ao psicólogo que o apoia, gera tensões insustentáveis.

 

E gerir a vergonha que, infelizmente, advém da incompreensão das pessoas que lhe estão próximas que, muitas vezes, não conseguem ocultar, chegando mesmo a tentar fazer um humor bem-intencionado, mas que dói e desespera, porque potencia a sua própria incompreensão face àquilo que lhe acontece diariamente, é algo de frustrante e sofrido.

 

Por isso, não conseguia começar a explicar esta perturbação, sem antes falar desta necessidade de a manter secreta e do intenso embaraço com os seus sintomas.

 

2         O que é a perturbação obsessivo-compulsiva?

 

Trata-se de uma desordem da ansiedade caracterizada pela presença de obsessões ou compulsões, que a pessoa reconhece serem excessivas e irracionais.

 

Obsessões são pensamentos, ideias, imagens, impulsos ou dúvidas, de natureza intrusiva e persistente, que são sentidos por quem os tem como inaceitáveis, sem sentido lógico ou de conteúdo bizarro, e que geram perturbação sob a forma de ansiedade ou dúvida. Apesar de as obsessões serem muito específicas a cada pessoa, geralmente dizem respeito aos seguintes temas: agressão e violência, responsabilidade por causar mal, contágio, sexo, religião, necessidade de exactidão ou ordem, e doenças graves. A maioria das pessoas que sofre desta perturbação evidencia tipos múltiplos de obsessões e, ao longo do tempo, tende a ir mudando de tipo de obsessões.

 

Compulsõessão impulsos para executar rituais comportamentais ou mentais para reduzir a ansiedade ou a probabilidade do perigo associado às obsessões. Os rituais compulsivos são deliberados, mas claramente não relacionados com o medo obsessivo que se destinam a neutralizar ou são excessivos em relação a este. Os rituais podem ser comportamentos visíveis ou actos mentais, impossíveis de ser reconhecidos por outros. Exemplos de rituais comportamentais visíveis: lavagens repetidas das mãos, verificações repetidas (das fechaduras, dos electrodomésticos, água, gás, etc), contagens (de objectos, situações, etc), repetições de acções de rotina (por exemplo, passar por portas). Exemplos de rituais mentais: orações repetidas excessivamente numa necessidade de cumprir um qualquer objectivo de redução de ansiedade, usar determinadas palavras, números ou imagens para neutralizar um medo obsessivo.

 

A descrição que acabámos de fazer facilmente nos transporta para uma realidade estranha – um pouco como se achássemos bizarro mas, simultaneamente, nos reconhecêssemos um pouco, quando nos detemos nalguns aspectos da descrição. De facto, todos nós temos pequenas versões funcionais de pensamentos obsessivos e de rituais compulsivos. Aliás, falar de saúde mental, é falar de uma graduação contínua: nos extremos da linha situa-se a disfuncionalidade e no meio… bem, no meio está a virtude, como diz a sabedoria popular. As obsessões e compulsões mais não são do que fenómenos exagerados do funcionamento normal do ser humano, por isso as reconhecemos de alguma forma.

 

Apesar de muito frequente, o problema é que não se fala sobre esta perturbação, ou seja, é muito pouco conhecida da população em geral (toda a gente fala de depressão, mas quem é que costuma dizer que teve um caso obsessivo-compulsivo, hem?). E, no entanto, os dados mais recentes apontam para cerca de 1 em cada 50 adultos a reunirem as condições para um diagnóstico de perturbação obsessivo-compulsiva. Por isso, se esse é o seu caso, infelizmente, não está sozinho. Aliás, de acordo com alguns censos destas coisas psicológicas, é a 4ª perturbação psicológica mais comum, depois da depressão, dependência de substâncias e fobias.

 

Uma situação problemática é que, muitas vezes, passam-se vários anos desde os primeiros sintomas até que se inicie um tratamento, quer porque quem sofre desta perturbação pouco fala sobre ela, quer porque nem sempre o diagnóstico é feito ao nível dos cuidados primários. E sem tratamento, neste caso, não há melhoria, uma vez que se trata de uma perturbação progressiva, com tendência a piorar, ainda que possa ter oscilações na sintomatologia, ao longo dos anos, piorando, regra geral, em situações de maior stress.

 

Mas, agora, anime-se! Pode ser tratado – isto não foi uma maldição de uma fada má, que compareceu no dia do seu baptizado...

 

3         Diferença entre obsessões “normais” e obsessões “POC”

 

Mas, se ter pensamentos “esquisitos” é normal, então, porque é que alguns se transformam em verdadeiras obsessões enquanto outros permanecem no anonimato da categoria do ruído mental?

 

De acordo com a investigação científica até à data, existem algumas diferenças importantes que permitem distinguir entre uma qualidade normal e obsessiva de pensamento.

 

 

  •       As obsessões POC são mais perturbadoras do que as obsessões normais

 

Apesar de toda a gente ter pensamentos indesejados, diferimos na forma de interpretar o significado destes pensamentos. Quando os pensamentos são interpretados como ameaçadores, geram medo, ansiedade e perturbação.

 

A investigação científica demonstra que as pessoas que não sofrem de POC encaram os pensamentos indesejados que têm, como sendo “ruído mental”, assumindo-os como normais e ilógicos. Por exemplo, uma pessoa pode dizer a si própria: “Que disparate, eu nunca faria isso!” ou “Isto não faz qualquer sentido”. Quando isso acontece, a pessoa deixa de prestar atenção a esse pensamento, que acaba por desaparecer sem dificuldade – se não há nada nessa ideia que capte a atenção, é como se o cérebro se fartasse dela e fosse procurar outra coisa com que se entreter.

 

Por outro lado, as pessoas diagnosticadas com POC tendem a interpretar incorrectamente estes pensamentos indesejados mas normais, atribuindo-lhes importância, um significado especial, assumindo que são perigosos ou que representam uma ameaça real, que podem ser um sinal de algo. Podem pensar coisas do género: “É mau sinal ter este tipo de pensamento”, “Se estou a pensar numa coisa má, é porque é verdade”, “Se eu pensar em coisas más, é porque sou uma má pessoa” ou “Se estou a ter pensamentos destes é porque estou a perder o juízo ou é sinal de que vou perder o controlo e fazer alguma coisa horrível”.

 

Quando uma pessoa interpreta os seus próprios pensamentos como perigosos ou ameaçadores, sente-se, naturalmente, perturbada ou ansiosa. Claro que, se acreditar realmente que ter certos pensamentos indesejados significa que vai acontecer alguma coisa má, é normal sentir medo. No entanto, é importante perceber que o problema é a interpretação errada que se faz do pensamento intrusivo, e não o próprio pensamento. O pensamento é uma experiência normal, que não faz mal nenhum. Interpretá-lo incorrectamente como perigoso faz com que ele se torne perturbante para quem o tem.

 

 

  •       As pessoas que sofrem de POC resistem mais aos pensamentos de tipo obsessivo do que as pessoas que não sofrem deste transtorno

 

Interpretar incorrectamente alguns pensamentos indesejados e intrusivos como perigosos leva não só à ansiedade, mas também à vontade de resistir-lhes ou afastá-los do espírito, acto no qual, por vezes, se consome muita energia.

 

De facto, uma reacção universal a algo que nos provoca medo ou ansiedade é evitá-lo. Repare: se tiver medo de cobras é natural que evite ir para o reptilário do jardim zoológico… Por isso, as pessoas que sofrem de POC investem muita energia em evitar, anular ou neutralizar os seus eventos internos referentes a pensamentos, impulsos ou imagens mentais que lhes criem mal-estar, ansiedade ou, mesmo, repugnância. Infelizmente, também é uma reacção universal aumentar-se a ansiedade face às situações que se evita, porque isso não nos permite validar, na prática, passando pela experiência, que não existe motivo para se recear essas situações (claro que, existem situações que geram medo e que devem ser evitadas, mas todos nós temos a noção lógica e racional de quais são – a nenhum de nós passa pela cabeça levar para casa uma cascavel cheia de veneno nos dentinhos, não é?).

 

A resistência a um evento interno (pensamentos, sensações, etc) tem por consequência última aumentá-lo de frequência ou intensidade. Assim, se enuncia uma lei com excepções tão raras que, de momento, não me lembro de nenhuma…

 

 

  •       As obsessões POC são mais repetitivas do que as obsessões normais

 

Isto significa que as pessoas que sofrem de POC reportam maior frequência de pensamentos obsessivos. Por vezes, estes pensamentos surgem na sequência de algo fisicamente presente mas, noutras vezes, parecem surgir do nada. O carácter repetitivo das obsessões também tem muito a ver com a forma como a pessoa interpreta este tipo de pensamentos.

 

Mais especificamente, assim que um pensamento intrusivo é interpretado como ameaçador, activa o sistema automático de detecção de perigo com que nascemos equipados (o sistema de fuga ou luta) o que faz a pessoa tornar-se hiper-alerta, em guarda, vigilante em relação àquilo que sente como uma ameaça. Esta é uma reacção normal e adaptada sempre que detectamos uma ameaça, porque nos ajuda a protegermo-nos do perigo. Por exemplo, quando tem de atravessar uma rua movimentada, este sistema automático de detecção de perigo começa a funcionar, tornando-o muito alerta e consciente dos carros que possam vir na sua direcção, permitindo-lhe fugir em segurança no caso de necessitar de o fazer.

 

No caso das obsessões POC, a ameaça que é percepcionada é um pensamento intrusivo que, não fora o facto de estar a ser percebido como uma ameaça, seria perfeitamente normal. É esta interpretação incorrecta que faz com que as pessoas com POC se tornem hiper-conscientes (preocupadas) com os seus pensamentos indesejados, como se eles fossem realmente perigosos. Esta tendência a preocupar-se com eles faz com que se tenha mais consciência da sua ocorrência, se esteja mais vigilante em relação à possibilidade de aparecerem e com que eles ocorram com mais frequência (quem procura, sempre encontra…).

 

Existem outras formas de reagir aos pensamentos intrusivos que podem fazer aumentar a frequência com que ocorrem. Por exemplo, os seres humanos não são lá muito bons a tentar controlar os seus próprios pensamentos, basicamente porque o nosso cérebro não tem a capacidade de eliminar coisas da consciência: pode interpretá-las, transformá-las, aumentá-las, diminuí-las, mas não pode não pensar nelas! Experimente, por exemplo, não pensar numa girafa azul, com pintas cor-de-rosa. Aposto que a primeira coisa que fez, foi, precisamente, construir uma imagem de uma girafa azul com pintas cor-de-rosa – depois, terá arranjado uma maneira qualquer de acrescentar uma legenda que indica a proibição de pensar nisso. Mas o pensamento está lá. Por isso, tentar afastar os pensamentos (o que se designa por supressão de pensamentos) acaba por levar a um aumento na frequência dos pensamentos indesejados. Se está a ter pensamentos que o incomodam, porque os interpreta como ameaçadores, e os tenta afastar a todo o custo, vai, muito provavelmente, acabar por aumentar a sua frequência e criar um ciclo vicioso de mais ansiedade e tentativas vãs de suprimir os pensamentos, gerando mais ansiedade...

 

Um dos objectivos da intervenção psicoterapêutica é precisamente ajudá-lo a aprender a encarar estes pensamentos de uma forma adaptada, como “ruído mental”, para que deixem de causar problemas de natureza obsessiva.

 

4         Então e as compulsões?

 

Mãos estaladas de tanto serem lavadas, tempo de desgaste roubado ao sono, em verificações que se repetem à exaustão, vergonha e embaraço social que nos atira para o isolamento das nossas quatro paredes, para que não vejam, para que não estranhem, não nos achem loucos, todo um dia vagaroso nas repetições inúteis de actos rotineiros, e os mails importantes que resistem a ser enviados, porque requerem a 5ª leitura, a segurança de que não foi dita nenhuma palavra que não pertencia lá… As compulsões cobram uma factura elevada na qualidade de vida de quem sofre de POC e são, frequentemente, a razão primeira de procura de ajuda, muitas vezes, com uma forte motivação acrescentada pelos familiares que convivem de perto com a aflição quotidiana.

 

Nas intervenções psicoterapêuticas é comum intervir-se directamente nas compulsões, ensinando e modelando um fenómeno conhecido por habituação à ansiedade: suster o impulso para a compulsão, enquanto se observa o desconforto a diminuir progressivamente (bem, parece fácil, mas exige esforço por parte do cliente e muita experiência técnica por parte do psicólogo que o acompanha…). A cada vez que se repete esta “vontade não concretizada”, a ansiedade vai diminuindo até níveis absolutamente normais, acabando mesmo por desaparecer, e devolver a qualidade de vida que tinha sido perdida. Além disso, e apesar de existirem intervenções específicas para as obsessões, ao não executar as compulsões, quebra-se o elo que se auto-perpetua entre ansiedade derivada das obsessões e impulso para executar uma acção que vise diminuir a ansiedade criada.

 

publicado às 09:40


1 comentário

Imagem de perfil

De sonhadoraincuravel a 10.08.2010 às 02:34

fiz um post sobre isso e resolvi pesquisar porque tenho este problema e ja ha algum tempo que sei que é um problema e que afecta varias pessoas mas axo que nunca tinha tido uma certa coragem de pesquisar sobre o assunto. encontrei este texto e axo que explica muito bem o que o problema é. assustei-me um bocado quando li que ia piorando e precisava ser tratado porque eu sei muito bem o que significa eu dizer que vou tentar resolver isto sozinha, inda por cima sou da area de saude e seiu muito bem como soa esta frase, mas axo que tenho mesmo que tentar fazer isto sozinha nem que seja para ver que é melhor falar com a psicologa. bom trabalho. beijinhos

Comentar:

Mais

Comentar via SAPO Blogs

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.



Mais sobre mim

foto do autor



Arquivo

  1. 2013
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2012
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2011
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2010
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2009
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D