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Este consultório da Oficina de Psicologia tem por objectivo apoiá-lo(a) nas suas questões sobre saúde mental, da forma mais directa possível. Coloque-nos as suas dúvidas e questões sobre aquilo que se passa consigo.
Autor: Francisco Gonçalves Ferreira
Psicólogo Clínico
“todos os dias acordo e não consigo deixar de pensar nele...está em todo lado, até mesmo quando não me consigo lembrar dele... porque ele era assim, fugaz...”
A nossa história concedeu-nos o privilégio de podermos sentir, dentro de uma gama variada de sentimentos, um tão profundo, interno e também tão desconcertante como o da saudade. Somos dotados dessa ferramenta da alma, por vezes tão vaga e indeterminável, outras vezes tão detalhada e explícita, que tem, porém, sempre a consequência, desejável ou não, de nos aproximar das pessoas ausentes. Quando nos aproximamos dos outros sentimo-nos mais acompanhados e esse sentimento ajuda-nos a confirmar que o nosso mundo interior, o nosso espaço vital, é habitável. Somos habitáveis e a saudade permite-nos valorizar-nos por isso.
Para além dessa valência, a saudade também nos rectifica a memória e situa-nos no meio dela, devolvendo-nos coordenadas da nossa identidade. Treinar a saudade e experimentá-la várias vezes ao longo da nossa vida, ou condensá-la num período mais ou menos definido de tempo, permite-nos treinar a nossa memória episódica e emocional e essa constelação concede-nos uma espécie de qualificação ao grau de “pessoas que pensam ou sentem a própria história”. Lembrarmo-nos com saudade é por isso um elemento de sedimentação da personalidade.
Mas e quando a saudade nos faz mal? Quando sentimos que deixamos de ser nós próprios porque as imagens dos ausentes nos roubam a capacidade de viver o presente e o dia-a-dia, deixámos de ser inteiros? Perdemos o sentido da realidade? Estamos a ficar malucos?
A sensação de alienação ou bloqueio porque estamos incessantemente a pensar numa pessoa que não está presente ou à qual, como naquela música do Sérgio Godinho, temos o “acesso bloqueado”, não é forçosamente sinal de doença nem de perturbação mental. É, sobretudo, uma insegurança e uma necessidade de proteção. É uma vontade de nos sentirmos inteiros, embora pareça que só possamos senti-lo na presença do outro.
Muitas vezes este sentimento já existe quando o outro “ainda” é bem real. Nas nossas relações sentimos que com ele, ou com ela, podemos ser quem “verdadeiramente somos”, mas custamos a senti-lo quando estamos sozinhos. Sentimo-nos completos na intimidade com o outro mas vazios na intimidade com nós próprios.
Seria bom se encontrássemos, de quando em vez, melhores caminhos para nos bastarmos e ponto final. Ou pelo menos, ponto e vírgula.
Relacionarmo-nos afectivamente com alguém, sentirmo-nos seguros o suficiente para nos darmos a conhecer, apaixonamo-nos, dizermos “aquele é meu amigo”, não acontece porque o outro seja, como costumamos dizer, a nossa outra “metade”, mas antes porque reconhecemos no outro alguém capaz de negociar connosco a nossa “totalidade”. Nós não somos metades. Somos uns. Mas precisamos dos outros para ter a certeza.
Na saudade incessante de alguém ausente, está a saudade do que éramos com ele, ou com ela, da verificação da nossa permanência no outro. É uma espécie de certeza da continuidade do nosso ser. Na saudade revisitamos os outros, mas mais importante ainda, aproximamo-nos de nós!