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Este consultório da Oficina de Psicologia tem por objectivo apoiá-lo(a) nas suas questões sobre saúde mental, da forma mais directa possível. Coloque-nos as suas dúvidas e questões sobre aquilo que se passa consigo.
Autor: Nuno Mendes Duarte
Psicólogo Clínico
A valeta doutor. Eu lembro-me da valeta. Como é que posso falar do que não me quero lembrar. Posso acender este cigarro? Importa-se, doutor? Claro que não se importa… As pessoas não se importam de aturar quem sofre. Sim, porque eu sei que me está a aturar. No fundo, que é que quer de mim, ah claro, eu é que vim ter consigo. Engana-se. Eu não vim ter consigo. Eu estou aqui. Mas não vim ter consigo. Porque eu não consigo estar com ninguém agora… sou uma amálgama de destroços de carro embutidos em mim. Oiço berros de vidros estilhaçados e gemidos de ferro torcido que surgem do vento. A valeta. A valeta era uma poça de sangue. Cor de rubi, escarlate, sangue vivo que se esvai de um corpo que ainda corre para apanhar a vida, que já começou a fugir pela ladeira abaixo. Não sabe que isto é uma ladeira desde que nascemos. É sempre a descer e acaba a qualquer instante. Se fecho os olhos é isto que está cá. Uma valeta em tons de escarlate com cheiro a morte. Eu não me quero lembrar, mas tenho um filme a correr no limite do meu olhar. Um filme com ligação directa ao peito…
Imagine alguém sentado sobre o seu peito doutor, a fazer força. Agora experimente respirar quando o horror lhe sopra ao ouvido. O ar não entra, e há um choro sufocado que aperta ainda mais. Que vida é esta de sobressalto e tremuras? Eu não consigo pensar em entrar num carro. São varas verdes, trémulas e gelatinosas que me enchem o lugar das pernas. E o horror do sangue na valeta que não me larga a pele… não lhe cheira aqui a sangue, doutor?